Abraão Lincoln
Lincoln,
o filme produzido e dirigido por Steven Spielberg, terá um sabor
especial para os brasileiros. As salas de cinemas do Brasil serão
tomadas por uma impressão de déjà vu: a principal trama da
história é um esquema de "compra" de votos de parlamentares para aprovar
a 13ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, a da abolição da
escravatura. O filme, para os críticos de cinema americanos e ingleses,
descreve as habilidades políticas de um grande presidente americano.
Para uma audiência brasileira, será impossível deixar de sentir um
cheiro de "mensalão".
O filme se baseou, em parte, na biografia de Lincoln, escrita por Doris Kearns, Time de Rivais: o Gênio Político de Abraham Lincoln (The Political Genius of Abraham Lincoln).
Toda a trama se desenrola nos meses finais do primeiro mandato do 16º
presidente dos EUA, Abraham Lincoln, então já reeleito para um segundo
mandato. A Guerra Civil americana, que se iniciou com o primeiro mandato
de Lincoln, se aproxima do fim, com uma evidente vitória da União,
abolicionista, sobre os 11 estados antiabolicionistas e,
consequentemente, separatistas. A União já sabe que os confederados,
praticamente derrotados, estão prontos para se render e assinar o
tratado de paz. Essa visão é comemorada pelos políticos da União, que
querem o fim imediato da guerra sangrenta e partir para o segundo
projeto do governo, o de reintegrar o país.
Porém, a visão de
Lincoln é mais ampla do que a de seus aliados. Ele percebe que o fim da
guerra também significa o fim de seu projeto político principal, o de
abolir a escravatura no país. Ele entende que sua Proclamação da
Emancipação dos escravos, assinada em 1863, só é respeitada pelos
estados confederados por força da guerra — ou do poder que lhe confere a
guerra. Assinado o tratado de paz, os estados contrários ao
abolicionismo podem voltar a explorar a escravatura, porque ele não
dispõe de nenhum mecanismo jurídico (nem belicoso) para obrigá-los a
aceitar a emancipação dos escravos. O único recurso é aprovar a emenda
constitucional, antes da declaração do fim da Guerra Civil.
Mas as
dificuldades para conseguir a aprovação da emenda são enormes —
impossíveis de serem vencidas na opinião de assessores e políticos mais
próximos de Lincoln.
São necessários os votos de dois terços dos
parlamentares para aprovar o projeto. E, apesar do Partido Republicano
de Lincoln, maioria no Congresso, estar praticamente fechado com ele,
faltam 20 votos. Enfim, para aprovar a emenda até o final de janeiro de
1865, antes do final da legislatura, é necessário conseguir esses votos
dentro da oposição, o Partido Democrata, que é contrário ao
abolicionismo.
Para assegurar todos os votos republicanos e
conseguir negociar com democratas, Lincoln conta com um poderoso aliado,
o fundador do Partido Republicano, Francis Preston Blair. Porém Blair,
só tem uma vontade na vida: iniciar negociações de paz com os
confederados e por fim à guerra civil. Em troca do indispensável suporte
declarado de Blair à emenda da abolição da escravatura, Lincoln o
autoriza a iniciar as negociações de paz.
Mas isso traz duas
complicações para o projeto de Lincoln: o tempo passa a urgir; e para os
republicanos radicais é um contrassenso terminar a guerra sem abolir a
escravatura, porque, afinal, um dos principais motivos da guerra foi a
abolição da escravatura. Um anúncio do fim da guerra irá anular os
esforços para aprovar a emenda.
A saída é aprovar a emenda, de
qualquer maneira, antes que uma iminente assinatura de tratado de paz se
torne pública. E isso terá de ser feito com a ajuda de democratas que
concordem em votar contra a orientação de seu partido. E um plano é
arquitetado: negociar a adesão dos lame ducks, parlamentares
(no caso, democratas) que estavam em fim de mandato, porque não foram
reeleitos. Afinal, eles não precisam se explicar com seus eleitores,
porque, de qualquer forma, já foram excluídos da carreira política, por
falta de votos nas eleições parlamentares do ano anterior.
Ainda
há resistência de políticos mais próximos a Lincoln, que preferiam
voltar a submeter a emenda à próxima Legislatura, mas o presidente dá um
murro na mesa e anuncia que a emenda vai à votação. Agora é correr
contra o relógio.
O secretário de Estado William Seward, o homem
que mais compartilha o dia a dia com o presidente, assume o comando da
operação. Lincoln e Seward consideram inapropriado oferecer dinheiro, em
moeda corrente, aos parlamentares. Decidem oferecer cargos no governo
que vai se instalar com a posse de Lincoln para o segundo mandato (o que
significaria renda mensal). O secretário contrata três agentes
experimentados em lidar com parlamentares, que passam a fazer todos os
tipos de manobras para contatar e negociar favores com os parlamentares,
em troca de seus votos. Lincoln também contata parlamentares, mas com
estratégias racionais, como a de explicar a importância do abolicionismo
para os EUA, e emocionais.
O trabalho dos agentes, sob a
supervisão do secretário de estado, é uma das partes mais interessantes —
e divertidas — do filme, pela criatividade deles e pelas formas que
observam e abordam cada parlamentar na mira do suborno. Eles acompanham
os debates no Congresso de olho na reação dos parlamentares-alvo, a cada
discurso, a cada aplauso ou protesto. Aos poucos, Lincoln, seu
secretário de Estado e os agentes vão fazendo a contagem regressiva. "Só
faltam 13 votos"...
Finalmente chega o dia da votação, os votos
estão razoavelmente contados, mas ninguém sabe exatamente o que esperar
de uns poucos indecisos. Não dá para afirmar se a emenda vai passar ou
não.
A minutos do início da votação, outro problema. Chega a
notícia de que representantes dos confederados estão em Washington para
assinar o tratado de paz. Há um rebuliço no Congresso e a maioria decide
suspender a votação. Três colaboradores correm até a Casa Branca
levando um bilhete com a notícia a Lincoln. O presidente escreve
rapidamente uma carta ao Congresso, dizendo: "Eu não sei da presença de
confederados em Washington". Isso é verdade. Ele sabia que os
Confederados estavam chegando para o tratado de paz, mas lhes enviou uma
ordem, por teletipo, para que ficassem fora da cidade, até que a emenda
fosse votada.
Há gritaria, protestos. Mas a votação se inicia,
finalmente, com grande ansiedade dentro do Congresso, no gabinete de
Lincoln, nos quarteis militares, que acompanham a votação, e nas ruas.
Com todo o suspense que Spielberg tem direito, apesar de a história ser
conhecida, Lincoln ganha a votação com dois votos a mais do que o
necessário — um dos quais de um deputado que declarou pessoalmente a
Lincoln que jamais votaria a favor do abolicionismo.
O filme termina com o discurso de posse de Lincoln para o seu segundo mandato.
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